16 de julho de 2018
Damous e Pimenta, que estiveram na superintendência, não são citados na ocorrência (Foto: Eduardo Matysiak)

O domingo 08 de julho entrou na história do judiciário brasileiro. Se até então discutia-se a insegurança jurídica que se abate sobre o país com idas e vindas nas decisões e, mais ainda, manobras e chicanas processuais – inclusive, e principalmente, do Supremo Tribunal Federal (STF), como descritas em Fachin: um estrategista anti-Lula -, a partir de domingo algo mais grave pontuou: o que eram um Poder, deixou de ser atendido.

O registro da desobediência está no sistema informatizado da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal do Paraná (SR/DPF/PR). Consta ali Ocorrência 564/2018 (transcrita na ilustração ao lado). Levada ao computador pelo Agente de Polícia Federal (APF) Juliano Costenaro, ela relata – ainda que de forma incompleta e imprecisa – a desobediência oficializada a uma ordem de um desembargador.

Ordem que, como se sabe, pode-se discordar e discutir, mas no Estado Democrático de Direito deve ser cumprida. Mas, domingo, na chamada República de Curitiba, não foi. Por interferência de um juiz e dois desembargadores, pelo menos dois delegados da Polícia Federal deixaram de executar o que outro desembargador mandou. Um estava no plantão da superintendência – na PF chamado de “delegado de sobreaviso: Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia; outro, chamado em casa, é o delegado regional executivo, Roberval Ré Vicaldi, segundo homem na hierarquia da PF no Paraná. Foi com ele que deputados e advogados falaram o tempo todo. Mas sua presença não consta do registro transcrito acima.

Na ocorrência não consta sequer a presença dos deputados federais do PT – Paulo Pimenta (RS) e Wadih Damous (RJ) – tampouco dos dois advogados de Lula: o constitucionalista Manoel Caetano e Luiz Carlos da Rocha, o Rochinha. É como se não tivessem estado na SR/DPF/PR.

Chegaram à frente do prédio no bairro de Santa Cândida por volta de 8h45. Até ultrapassarem o portão e ingressarem no saguão do prédio, já eram por volta de 09h15. Foram recebidos pelo agente que assina a ocorrência que ignorou suas presenças: Costenaro: “um baixinho e loiro”, na descrição de dois dos presentes. Tinha ao lado outro agente, provavelmente, Paulão. Levavam a decisão do desembargador Rogério Favreto no papel. No celular de um dos advogados, a cópia do Alvará de Soltura. Recorrendo ao computador do plantão, o agente localizou a decisão no e-mail.

Ao que consta, nos plantões da Superintendência, diante da chegada de um Alvará de Soltura, agentes comunicam por telefone ao delegado de sobreaviso e este determina a execução. Sem pestanejar. Sem discutir. Não foi o que aconteceu.

Costenaro alegou a necessidade de um delegado. Na superintendência, como é costume, não havia delegado. Eles ficam em casa, de sobreaviso. Daí a forma como são tratados.

Como narra a ocorrência, naquele dia era Flúvio Garcia. Foi avisado em casa, tal como o APF Chastallo, chefe do núcleo de operações, que chegou em seguida.

Consta, dentro da PF, que Flúvio também foi para lá. Mas os deputados e advogados não se recordam de terem sido apresentados a ele. Insistem que falaram apenas com Roberval, o delegado regional executivo, que chegou depois de 10h30. Chastallo sim, estava e depois ficou sempre ao lado de Roberval. Afinal, cuida também da carceragem.

Antes de tomar qualquer atitude, Roberval alegou necessidade de ler a decisão – são cerca de nove laudas -. e se retirou. Paralelamente, falou ao telefone com o superintendente, Maurício Valeixo, fora da cidade naquele final de semana, e com o delegado regional de Combate ao Crime Organizado, Igor Romário de Paulo. Este é considerado o chefe da Lava Jato que restou em Curitiba.

A decisão do desembargador foi oficialmente conhecida, pelo menos, às 9h46. Mas não a cumpriram. Afinal, tratava-se do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um condenado e preso em processo discutível, sem provas, que todos imaginavam apagar trancafiando-o em uma sala de 15 metros quadrados, mas continua mais forte que seus opositores. Este sim, amedrontados.

Como ficou ainda mais evidente neste final de semana, ele é um troféu da Operação Lava Jato e da República de Curitiba. Das duas a superintendência faz parte. Logo, a cumprir uma decisão judicial e perder o troféu, buscou-se a forma de mantê-lo ali. Atropelando o Alvará assinado pelo desembargador Favreto.

Deputados e advogados ficaram do lado de fora até serem chamados à sala de Roberval. Estavam ali quando Moro ligou pela primeira vez. Ouviram o policial dizer ao juiz que teria que cumprir a ordem. Só depois de meio dia é que a “decisão” de Moro chegou à superintendência. Ainda assim, Roberval, ao telefone com o juiz, explicou que seu despacho bão o desobrigaria de cumprir a decisão do desembargador. Não era uma contraordem.

Moro segundo se comentou, estava de férias em Portugal. Mas, na quarta-feira 11/07, a assessoria de imprensa da Justiça Federal explicou à CartaCapital que ele, mesmo em férias, não se ausentou de Curitiba.

Porém, estava de férias. Afastado de suas funções. Mas, curiosamente, o despacho estava assinado como se ele estivesse ali, em Curitiba, no exercício de sua função (como mostra a reprodução ao lado).

Não há explicações de como ele soube da decisão. Não foi pela imprensa, pois a primeira a divulgar a notícia foi Mônica Bérgamo, na Folha de S. Paulo. Exatamente às 12h02. Três minutos antes de o “despacho” do juiz de primeiro grau ter sido registrado no sistema. Certamente foi avisado por alguém da chamada República de Curitiba.

Até o meio dia, não havia impasse jurídico algum. Mas sim uma ordem de um tribunal a ser cumprida. Supostamente, dois delegados estavam na Superintendência e não a executaram. Sem qualquer respaldo legal.

Poderiam, teoricamente, questionar a juíza responsável pelo caso, Carolina Mouro Lebbos, da 12ª Vara Federal, que cuida da execução penal. Afinal, a decisão do desembargador estava relacionada ao processo que ela cuida. Mas isto não foi feito. Seu nome sequer foi lembrado. Não se falou dela. Foram buscar o apoio de Moro que se socorreu com o desembargador, seu antigo amigo, João Pedro Gebran Neto.

Moro, ao saber pelo delegado que ele cumpriria a ordem mesmo com o despacho que ele mandou, sugeriu então que Roberval ligasse para Gebran Neto. O delegado tentou. No mínimo duas vezes. Não conseguiu. Neste meio tempo, falou com o desembargador Favreto. Ouviu dele que deveria cumprir a decisão. Pouco depois, chegou a nova determinação do desembargador de plantão em Porto Alegre. Desautorizava a interferência de Moro e determinava a execução do Alvará de Soltura, imediatamente.

Mas surgiu a ligação de Gebran, desaconselhando Roberval a tomar qualquer atitude. Anunciou que avocaria o processo para ver o que fazer. Foi quando despachou falando da incompetência do desembargador no plantão para decidir sobre o caso. Ainda que não tenha poderes para, monocraticamente, derrubar decisão de um colega. Se impôs em um plantão para o qual não estava designado. Chocou-se com o colega no mesmo nível de igualdade.

Depois, recebeu o respaldo do presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que também não detêm poderes para dirimir conflito de competência entre dois colegas. Caberia acionar sim o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual está de plantão, durante o recesso, sua presidente, Laurita Vaz.

Surpreendentemente para muitos, a ingerência, juridicamente, indevida, dos três – o juiz Moro e os desembargadores Gebran e Thompson Flores – acabou respaldada na segunda-feira pela presidente do STJ. ministra Laurita Vaz.

Se a decisão do juiz federal Rogério Favreto, oficialmente responsável pelo plantão do TRF-4, merecia ou não reparos, era algo a ser discutido. Dentro do devido processo legal, como determinam, no Estado Democrático de Direito, Constituição, leis e códigos. Por meio de recursos, através de decisão colegiada ou por tribunais superiores. Jamais por um igual.

Indiscutível, porém, é que Favreto estava em pleno poder, outorgado pela cúpula do Tribunal. No mínimo deveria ser respaldado pelo seu presidente. Nada tinha de incompetente para apreciar um Habeas Corpus (HC) de réu preso que, como mostramos em Fatos novos do HC de Lula: negam, mas existem, despachou em cima de um pedido diverso de tudo o que fora decidido antes sobre este caso.

Fosse ela teratológica, como afirmam, não seria a primeira vez que aconteceria. Nem mesmo caso o réu fosse libertado, ainda que contrariando a chamada “opinião publicada”. Ocorreram muitas vezes com outros presos famosos que saíram de detrás das grades pela porta da frente do presídio. Beneficiado por liminares em Habeas Corpus totalmente discutíveis. Alguns deles, se recorde, da lavra de ministros do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Para refrescar as memórias estão aí os casos de Alberto Cacciola, Roger Abdelmassih e, mais recentemente, Jacob Barata Filho? São apenas alguns.

O debate em torno do mérito destas decisões, porém, não impediu que as liminares concedidas, ainda que consideradas esdrúxulas, fossem cumpridas. O que não ocorreu neste domingo, quando a hierarquia do judiciário foi totalmente desprezada. Com o aplauso de muitos e a omissão de outros tantos.

Responsabilidades deveriam ser apuradas, como propôs Favreto ao determinar remessa de peças – ele certamente desconhecia o Boletim de Ocorrência da SR/DPF/PR – que demonstram o descumprimento de sua decisão pelo juiz Sérgio Moro e pelos delegados Roberval e Flúvio. Indiretamente, acarretaria também na análise da posição de Gebran Neto e de Thompson Flores, aos quais não se referiu, certamente, respeitando a hierarquia.

Mas, se tratando de Lava Jato, de República de Curitiba, tudo poderá novamente ir parar debaixo do tapete. Pelo menos se valer a decisão, na segunda-feira (09/07), do desembargador Gebran Neto, ao assumir o caso e despachar: “REVOGO integralmente as decisões em plantão deferidas nestes autos, inclusive no tocante ao envio de comunicação peças à Corregedoria-Geral de Justiça da 4ª Região e ao Conselho Nacional de Justiça, porquanto flagrantemente prejudicadas em razão de deliberações posteriores“. (grifo do original)

Sem dúvida que as decisões foram revogadas pelo presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores. Cuja participação neste chamado conflito positivo de competência entre dois desembargadores iguais a ele é considerada por juristas como inusitada. De qualquer forma, a decisão do presidente do TRF-4 não apaga – ou, ao menos, não deveria apagar – a ingerência de um juiz em autos que não lhe diziam respeito. Tampouco a desobediência que ele provocou, levando o(s) delegado(s) a descumprir(em) uma ordem de um desembargador. Logo, a questão mereceria a apreciação pela corregedoria do STJ e/ou pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Muito embora a experiência demonstre que pouco pode se esperar de ambos.

Mais preocupante ainda quando a Procuradora Regional da República sai em defesa dos mesmo e acaba endereçando ao CNJ e ao STJ pedido para investigarem a atuação de Rogério Favreto.

(*) Matéria reeditada às 22h25 da quarta-feira (11/07) para consertar o local onde Sérgio Moro estava no domingo (08/07)

Marcelo Auler