7 de fevereiro de 2020
Ricardo Stuckert

Em janeiro de 2020, os editores do Brasil Wire Daniel Hunt e Brian Mier, em parceria com Michael Brooks, apresentador do Michael Brooks Show, entrevistaram o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva na sede do Partido dos Trabalhadores, em São Paulo. A entrevista foi o resultado de um processo de seis meses, que começou com um requerimento no tribunal de Curitiba para entrevistá-lo, quando ele ainda era um preso político. Lula foi preso graças a uma operação judicial partidarizada, que vazamentos de conversas privadas demonstraram ter sido planejada para alçar o neofascista Jair Bolsonaro à presidência. Durante a preparação da entrevista, decidimos não perguntar os detalhes sobre o seu tempo de prisão, como muitos jornalistas fizeram recentemente. Ao invés disso, decidimos focar em questões relacionadas ao legado de um sindicalista e presidente historicamente importante, no imperialismo dos EUA e em como derrotar o ressurgimento do fascismo no cenário mundial. A transcrição a seguir representa a Parte 2 da entrevista (a Parte 1 pode ser lida aqui). O vídeo foi filmado por Ricardo Stuckert, cinegrafista de “Democracia em Vertigem” e pelo produtor da TeleSur, Nacho Lemus, e pode ser assistido no canal YouTube Michael Brooks Showaqui.

Presidente Lula, eu gostaria de te perguntar, como ex-líder sindical e trabalhista, sobre o que chamamos de uberização da economia. Um grande problema nos Estados Unidos, e acho que também no Brasil, é que estas empresas do Vale do Silício criam modelos de negócios para dizer, por exemplo, que motoristas de aplicativo não são realmente trabalhadores, são freelancers e não funcionários da empresa, que eles dizem ser uma plataforma e não uma corporação que conta com trabalhadores comuns. Os trabalhadores estão isolados. Motoristas da Uber, por exemplo, estão nos próprios carros, eles não se encontram e não têm oportunidades para se organizar. As companhias diminuem todos os salários como prática e podem perder dinheiro por muito tempo. Mas então elas adquirem o capital de investimento e redefinem o mercado para tirar poder dos trabalhadores. Qual é a estratégia para combater esta uberização da economia no Brasil, nos Estados Unidos e no mundo?
Michael, eu tenho tentado discutir este assunto com os dirigentes sindicais brasileiros porque é uma das minhas preocupações, já que eu fui dirigente sindical. Não sei se você sabe, mas desde a queda do Lehman Brothers, 125 países do mundo já fizeram reforma trabalhista para tirar direitos dos trabalhadores, não para colocar direitos. Ou seja, é quase como voltar ao tempo da escravidão. O indivíduo trabalha sem a certeza de que haverá trabalho no dia seguinte, sem a certeza de um seguro contra acidentes de trabalho ou de aposentadoria. Ele trabalha utilizando o próprio patrimônio, que pode ser perdido em uma batida de carro.

Existem muitas pessoas qualificadas, engenheiros, advogados. Há pessoas que trabalharam no Congresso Nacional, no governo. E esta gente foi mandada embora e não tem emprego, então vai trabalhar na Uber. É quase como se fosse uma tábua de salvação. Quando o navio está afundando, pega-se aquele bote salva-vidas, mas ainda não é seguro. Este bote não é garantia, o importante era estar a salvo no navio. O sistema financeiro, a mídia e a elite brasileira vendem a ideia de que o Brasil está evoluindo porque está retirando direitos e dificultando as aposentadorias dos trabalhadores. Há uma fila de mais 2 milhões de brasileiros esperando se aposentar, e o presidente disse que contrataria 4 mil soldados da reserva para resolver o problema da previdência. Quando eu era presidente da República, entre 2007 e 2010 e, depois, no governo da Dilma, o trabalhador se aposentava em meia hora. O salário maternidade saía em meia hora. O trabalhador não ia atrás da previdência, era o contrário. Era a previdência que comunicava o trabalhador que ele havia completado o tempo de serviço e tinha direito à aposentadoria, para que ele procurasse a Previdência Social. Nós comunicávamos. Temos casos de trabalhadores que se aposentaram em cinco minutos. É só pegar as manchetes de jornais da época para perceber o milagre. Tudo isso foi desmontado no Brasil. Então, eu acho que as pessoas estão sendo educadas para considerar o motorista da Uber um microempreendedor. Quando eu tinha 20 anos de idade, comecei a trabalhar como torneiro mecânico e naquele tempo não se falava de “microempreendedor” ou “empreendedorismo”. Eu queria ter um bar. Eu achava que não ter patrão era a melhor coisa do mundo , ser meu próprio chefe. Ou ter um táxi. Agora se fala de empreendedorismo. Então, o cidadão vai trabalhar na Uber, não tem segurança nenhuma, previdência social ou certeza de quanto vai ganhar no mês. Eu conheço pessoas que venderam o carro porque não conseguiram pagar a prestação. Pagam R$1.600,00 de aluguel e tiram o mesmo valor por mês. É assim que estão vivendo porque não têm outra oportunidade. Então, as pessoas entregam pizza de bicicleta debaixo de chuva. Esses dias teve um temporal em São Paulo e estava lá o coitado do entregador de bicicleta, porque não tem outro jeito de sobreviver. Não tem emprego. E devemos agradecer por essas pessoas se sujeitarem a isso, porque caso contrário poderiam virar assaltantes. É melhor trabalhar assim do que comprar um revólver para assaltar o primeiro que cruzar. Então, nós precisamos recuperar os direitos do povo trabalhador. Houve mortes e greves históricas para que as mulheres conseguissem a jornada de oito horas em Chicago, no Brasil, na Suécia… Houve mortes de trabalhadores para conseguir jornada de 48 horas e previdência social. Tudo isso está sendo jogado fora em benefício dos empregadores que, em sua grande maioria, são representantes do sistema financeiro. É a financeirização da economia. Não se sabe mais quem é o dono da indústria, agora é tudo corporação e conjunto de fundos. E as pessoas ganham especulando, sem produzir e vendendo papéis, o mundo está assim. Em Singapura, um grupo de pessoas criou um fundo para proteger os trabalhadores da Uber. E, quando havia perto de seis mil pessoas inclusas neste fundo, este grupo procurou a Uber para negociar os direitos dos trabalhadores. Obviamente, os trabalhadores deverão encontrar um jeito de se organizar, porque senão a situação será muito ruim. Eu acho que é uma questão de tempo. O movimento sindical deverá encontrar um jeito de organizar estas pessoas que estão trabalhando de forma precária, sem nenhum direito ou garantia, porque têm que sustentar a família e pagar contas. E, no final do mês, a vida é dura. Mas tenho certeza que vamos encontrar uma solução para isso, é por isso que eu defendo que o PT continue brigando. Toda vez que o partido tiver dúvidas sobre o que fazer, deve lembrar com qual propósito foi criado. Se alguém tiver alguma dúvida sobre qual lado o PT está e qual a briga que deve comprar, é só pensar por qual razão o PT foi criado.

Quando o François Hollande foi eleito presidente da França, veio em visita ao Brasil durante a Rio+20. Eu conversei com ele e teve um determinado momento que eu disse: “Eu queria te dar um conselho, você sabe por que ganhou as eleições. Então pegue o programa de governo, coloque na cabeceira da cama e todo dia de manhã, antes de lavar o rosto, leia os discursos que você fez para ganhar as eleições, para não esquecer”. Eu fui visitar o Obama no começo do mandato dele e disse: “Obama, você é um dos poucos presidentes no mundo que não terá dificuldades para governar. É só ter a ousadia do povo negro que votou em você para governar esse país. É ousadia. Fazer as coisas de maneira diferente do habitual”. E é assim que as coisas vão se encaixando, porque quando se ganha uma eleição, a primeira coisa que acontece é a elite e os empresários cercarem o presidente, mesmo que não tenham votado nele, é duro. Uma pessoa que você nunca viu bate à sua porta todos os dias, e os pobres que te elegeram não conseguem mas te ver.

Há muito a ser aprendido. Eu ia para os comícios e gostava de abraçar e beijar as pessoas, mas os seguranças não deixavam. Eu saía num carro blindado. E dizia: “É engraçado, quando a gente está disputando eleições desfila com carro aberto, abanando a mão para todo mundo. Quando ganha, não te deixam acenar para o povo, ou abraçar. Quando os ricos vão ao palácio visitar o presidente, não tem segurança. Mas quando os pobres vão, sim. É impressionante”. Então, é por isso que eu queria voltar a ser presidente em 2018, porque tinha muita coisa que aprendi que era possível fazer quando eu já estava fora do governo. É possível fazer muito mais sem radicalizar, é só cumprir a Constituição, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Bíblia. Está escrito ali o que as pessoas devem ter. As pessoas devem ter casa, escola, emprego, salário e comida. Não há nenhuma lei que diga que as pessoas devem ficar sem comer. Entretanto, existem as grandes empresas do Vale do Silício que coordenam a internet no mundo hoje. A gente pensava que os meios de comunicação seriam democratizados e existem, hoje, meia dúzia de empresas que coordenam tudo. Falsificam até eleição. Ou seja, o ser humano será transformado em algoritmo se não tomar cuidado. As pessoas começam a saber o que você pensa, faz, o que gosta de comer, começam a interferir e contar mentiras. As eleições nos Estados Unidos, no Brasil e na Hungria foram assim.

Em uma entrevista recente para o jornalista Nacho Lemus, da TeleSur, o senhor disse que acreditava que forças externas estavam envolvidas nos protestos de junho de 2013 no Brasil. E imediatamente foi atacado por brasileiros da extrema-esquerda, que o acusaram de reduzir o que ocorreu a uma mera intervenção da CIA. Eu sei que o PT adota a visão gramsciana de Estado Ampliado – não apenas levando em conta o governo, mas organismos, a exemplo das corporações. O senhor poderia explicar o que quis dizer quando afirmou que houve interferência externa em 2013?
Primeiro, esta pergunta é importante porque me permite explicar claramente o que falei na outra entrevista. Eu não disse que o movimento havia começado com alguém da CIA. O movimento começou através das manifestações de pessoas que lutam pelo transporte coletivo, em várias capitais brasileiras, e foi um movimento legítimo. Acontece que quando surgiram os black blocks este movimento foi tomado. Não foi o movimento pelo transporte público que colocou 1 milhão de pessoas da classe média na rua em manifestações contra o governo, a Copa do Mundo e quase tudo que acontecia no Brasil. A Rede Globo de Televisão nunca havia interrompido a apresentação das suas novelas para transmitir movimentos de reivindicação contra o aumento da passagem de ônibus ou por maiores salários. E, de repente, o movimento era convocado a todo tempo pela TV Globo, pelo SBT, pela Bandeirantes, pela Record, como se fosse uma festa promovida. As passeatas eram transmitidas ao vivo, o que nunca havia acontecido na história do Brasil. Então, se é verdade que o movimento começou aqui em São Paulo para lutar pela redução do preço da passagem, essa luta foi tomada de assalto por outros interesses. Hoje eu tenho mais clareza, e acho que a gente não saberá tão cedo o que estava por trás daquilo.

Mas eu lembro da Primavera Árabe, da derrubada do Mubarak – que precisava cair mesmo, era um ditador e estava lá há quantos anos? O povo elegeu o Morsi, e depois de quanto tempo o derrubaram? E quem está lá agora? Se era verdade que o povo estava lutando por democracia, por que está lá agora com três generais comandando o Egito? E não existe mais manifestação. Na Turquia, a mesma coisa. O Erdogan nos ligou dizendo que aquele não era um movimento por uma praça, era para derrubar o governo, e para tomarmos cuidado no Brasil. Eu tenho razões de sobra para suspeitar do que aconteceu aqui no Brasil. Primeiro, porque nenhum sindicato de trabalhadores estava fazendo manifestação contra o governo. Não sabíamos que movimento era esse, uma parte da sociedade parecia contra tudo e era quase que algo contra o PT, a Dilma, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Eu escrevi um artigo para o New York Times dizendo que o povo que havia aprendido a comer contra-filé estava querendo comer filé. Era assim que eu pensava, mas hoje eu acho que foi muito mais do que isso. Não era uma visão puramente economicista, aquilo aconteceu numa visão política. Eu tenho muita desconfiança. O que aconteceu aqui, aconteceu no Equador, na Argentina e na Bolívia. Qual era a lógica de fazer o que fizeram comigo neste processo da Lava Jato? Qualquer advogado que tiver acesso ao processo sabe a mentira que está sendo contada, a canalhice que foi feita comigo. O tema do Lawfare, levantado pelos meus advogados, é hoje uma das coisas mais comentadas nos meios jurídicos do mundo, porque é uma forma mais moderna e eficaz de derrubar democracias e acabar com a representação do voto popular. Foi assim que fizeram aqui e também na Bolívia, com Rafael Correa no Equador. Então, eu tenho muita desconfiança sobre o que está acontecendo com judicialização da política mundial.

Temos que levar em conta que uma pessoa honesta e séria não conta mentiras ou espalha fake news por WhatsApp. Mas quem não tem valor, dignidade ou moral vive mentindo. Outro dia li uma reportagem dizendo que o Trump conta 12 mentiras por dia, não sei se eram 12, mas li num jornal… Ora, como pode um presidente da República mentir 12 vezes ao dia? Como pode aquela quantidade de mentiras nos tuítes do Bolsonaro? Quando alguém vira presidente da República deve ser responsável, não é um cargo pequeno. É um cargo muito grande. E as pessoas devem lembrar da respeitabilidade que o povo deve ter na instituição. Então, eu tenho uma preocupação profunda com determinados tipos de movimentos que aconteceram na Itália e em outros países. A democracia precisa ser fortalecida. Os partidos políticos precisam existir. Para quem acha que existe saída fácil para a humanidade fora da política, o que vem depois dela sempre será pior. É por isso que eu defendo a política e os partidos políticos. Se o político não presta, substitua-o. O que não pode é achar que existe um salvador da pátria no meio empresarial. Somente a democracia e o exercício da democracia na sua plenitude é que vai resolver os problemas do mundo inteiro, resolver os conflitos nos Estados Unidos, no Brasil e evitar que haja guerra. Há algum sentido em Trump mandar matar um general iraniano no Iraque? Qual é a lógica? O mundo precisa de paz e esperança. Precisa que as pessoas acordem todos os dias achando que o dia será bom. Quem ganha com uma guerra contra o Irã agora? Quem ganha com uma guerra contra o Iraque? Outro dia, o Trump se queixou sobre o Irã ter conquistado o Iraque porque a maioria é xiita, mas quem fez a guerra foram os Estados Unidos. E eu estava com o Bush em dezembro de 2003 quando os americanos fizeram a guerra, e depois estive com o Clinton em Davos. E Clinton já dizia que Bush trataria o assunto baseado em pesquisas, que atacaria o Iraque se percebesse que ganharia as eleições. E atacou. A troco do que? Melhorou a vida do povo no Iraque ou a democracia iraquiana? Não, está pior. Hoje existe uma sociedade nômade andando no mundo, que é um grupo de pessoas contratadas para assassinar, dar golpes e fazer guerra. Eu estou convencido de que os governantes democratas terão que fazer um esforço muito grande para restabelecer os valores da democracia. Sem democracia não vamos a lugar algum. Por isso torço para que nas próximas eleições nos Estados Unidos os americanos possam eleger alguém comprometido com a democracia, a paz, o desenvolvimento e a harmonia entre os povos.

O Reino Unido é geralmente considerado uma marionete dos Estados Unidos, mas possui sua própria política externa para a América Latina, que endureceu nos últimos dez anos. Quais foram as suas experiências com os diferentes governos no Reino Unido e qual a sua opinião sobre as relações entre o Reino Unido e o Brasil atualmente?
Vou contar uma novidade. Em 1980, eu era dirigente sindical na cidade de São Bernardo do Campo e me juntei à greve dos mineiros na Inglaterra, quando a Margareth Thatcher os derrotou. Estive lá por dois dias fazendo discurso e passeata com eles.

A relação do Brasil com a Inglaterra é muito respeitosa. Houve momentos em que a figura da rainha era algo muito acima da compreensão normal dos cidadãos, batizados da família real ainda são transmitidos aqui no Brasil. É a única rainha que ainda mantém a força da coroa.

Eu tive uma boa e respeitosa relação com Tony Blair, e também com o Gordon Brown. Foram os dois governos com os quais eu tive contato. Lamentavelmente, o papel do Tony Blair na decisão para a Guerra do Iraque foi lamentável, e ele sabe. Ele sofre agressões nas ruas de Londres por causa da guerra, e ele sabia que não havia armas químicas. Nós também sabíamos, porque o secretário que cuidava do departamento de armas nucleares na ONU era brasileiro, o embaixador Bustani. Era ele quem cuidava de armas químicas, e cansou de dizer que não havia armas. Por causa disso, os Estados Unidos exigiram a retirada do Bustani para o Fernando Henrique Cardoso, e ele foi retirado. Colocaram alguém do Japão que dizia que havia armas. Já faz quanto tempo que invadiram o Iraque e onde estão as armas químicas? A única arma química que havia lá era o próprio Saddam Hussein, que mentiu para o povo o tempo inteiro. E o Bush, que também mentiu para o mundo.

Eu posso dizer com certo orgulho que Tony Blair e Gordon Brown me ajudaram no início do meu governo. Eles eram muito simpáticos, acho que pelo fato de eu ter sido um operário e trabalhado em fábricas. Quando o Gordon Brown cuidava da economia inglesa, ele ajudou muito, falava muito bem do Brasil aos jornais, e isso ajudava bastante. Eu tive uma relação muito boa com eles, mais forte com o Gordon Brown, que eu achava uma figura mais séria e comprometida. Do ponto de vista comercial, acho que o comércio chegava a 8 bilhões de dólares. É pouco porque o Brasil não é levado muito em conta ou a sério nestas partes do mundo. Eu fui muito bem tratado pela rainha da Inglaterra, mas o Brasil não tem força política internacional, então não é tão levado em conta. Foi levado em conta no nosso mandato, acho que pelo fato de eu ter sido o primeiro metalúrgico a chegar à presidência. Na verdade, eu era um estranho no ninho, tanto eu quanto o Evo na Bolívia. Imagina um índio cocaleiro presidir a Bolívia? Eu conheci o Gonzalo, o presidente que renunciou em 2003, ele não falava nem espanhol. Quando queria explicar algo falava em inglês, tinha dificuldade em usar o espanhol, e era presidente da Bolívia. O Evo Morales foi um presidente de verdade, que fez políticas de inclusão social, reduziu a inflação, gerou empregos, aumentou as reservas internacionais da Bolívia, que são maiores que o PIB. Tudo isso feito por um índio, e agora as elites o derrubaram.

Então, guardo boas recordações da Inglaterra, já fui ao palácio realizar um debate. Eu estranhava aquela situação, era tudo muito diferente para mim, mas todos eram muito respeitosos para com o Brasil e vice-versa. Eu também fui ao Congresso inglês e agradeço muito a solidariedade que o Labour Party dedicou a mim durante a prisão. Até escreverei uma carta ao Corbyn agradecendo ao trabalho que ele fez, de solidariedade em relação à minha injusta prisão. E eu espero que o Brasil saiba que a Inglaterra é importante politicamente e que manter manter relações saudáveis com este país é sempre uma porta aberta para que o Brasil possa penetrar em outros países do mundo.

Presidente, o senhor recentemente citou a Mia Couto, que disse que quando o povo está com medo, elege monstros para protegê-lo. Gostaria de saber duas coisas a respeito disso. Primeiro, eu sei que precisamos de uma direção intelectual, mas existem qualidades espirituais ou emocionais que um líder precisa ter para diminuir o medo do povo e dar alguma esperança a ele? E, se me permite, Bernie Sanders é este tipo de líder?
Eu ainda não tive o privilégio de conhecer Bernie Sanders pessoalmente, apenas através da imprensa, de pessoas que estiveram com ele e também das suas declarações de solidariedade a mim. Ele conversou com companheiros do PT e com Fernando Haddad, e a impressão que eu tenho é a melhor possível. E embora ele não tenha conseguido passar das primárias do Partido Democrata, ele fez uma campanha muito empolgante para a juventude e um discurso, para os Estados Unidos, muito esquerdista. Durante mais de 20 anos eu procurei alguém de esquerda em bares americanos e não encontrei, então quando surge o Bernie Sanders é uma novidade extraordinária. Dá uma esperança saber que há, dentro do Senado, alguém já com uma certa idade já, mas de pensamento forte. E acho que isso é importante porque um país que tem o tamanho da economia americana pode melhorar muito a qualidade de vida do seu povo se se preocupar menos com guerras e em gastar dinheiro com as Forças Armadas ou espionagem. Poderia utilizar um pouco deste dinheiro para melhorar a vida do povo pobre dos Estados Unidos, que também mora mal e tem problemas de saúde. Se o Sanders ganhasse as eleições poderíamos sonhar, mesmo sabendo que um presidente americano terá toda uma máquina armamentista poderosa por trás, que às vezes dificulta a ação democrática. Só é possível governar corretamente se tiver definido o motivo de ser governo, para quem quer governar e qual é o seu lado. Temos lado na nossa passagem pelo planeta Terra. A verdade é que o rico não precisa do Estado, mas se apodera dele e muitas vezes exerce o papel do próprio Estado. Então, para aprender a governar deve-se observar como uma mãe faz para cuidar dos seus filhos. Uma mãe, se tiver dez filhos, vai gostar de todos em igualdade de condições. Mas se tiver um mais debilitado, é para aquele que ela vai dar a segunda mamadeira e pegar no colo para fazer dormir. E o papel do Estado é esse, é governar para quem precisa – o povo trabalhador e aqueles que sequer têm trabalho. Eu fico muito triste porque tinha muito orgulho em saber que a nossa política de inclusão social havia conseguido acabar com o Mapa da Fome neste país. Eu tive muito orgulho no dia que a ONU reconheceu que o Brasil tinha saído do Mapa da Fome. E hoje, o Brasil voltou ao Mapa da Fome. A cidade em Pernambuco, Brasília Teimosa, onde acabamos com as palafitas e revitalizamos as ruas e as praias, voltou a ter palafitas. A quantidade de pessoas que dormem nas ruas deste país… Eu não via mais crianças pedindo esmola, agora as crianças voltaram a pedir e estão embaixo de pontes. Isso não tem sentido num país rico como o Brasil. E a Revista Forbes publica a lista dos 20 homens mais ricos do país. As pessoas dizem que estou mais radical, mas estou mais humano. Aprendi a ser mais humano na cadeia e refleti mais, medi meus 70 anos de vida para poder saber que preciso lutar mais. É inadmissível aceitar a ideia de que a elite brasileira não aceita o crescimento econômico do mais pobre, que tenha direito à saúde, educação, água e escola. Eles não aceitam que o pobre tenha tudo aquilo que é elementar. Então, tenho muito mais consciência política e por isso quero brigar mais. “Ah mas o Lula vai voltar, saiu da cadeia nervoso, querendo polarizar”. Quero polarizar mesmo, quero fazer um debate ideológico mais profundo e que as pessoas saibam que não existe nenhum ensinamento que diz que alguém deva ficar três dias sem comer ou que não deva ter um copo de leite e um pão para dar aos filhos num país rico como este. É por isso que eu pareço mais nervoso e radical. Gosto de conversar e negociar, aprendi a fazer política negociando, mas não quero mais ser enganado. E quero fazer com que o povo brasileiro levante a cabeça. O cara que trabalha na Uber ou entrega pizza de bicicleta deve saber que merece coisa melhor. O cidadão que dorme na calçada deve saber que não precisa dormir na calçada, o Estado tem obrigação para com ele. Senão, para que Estado? Assim, termino agradecendo a entrevista. É sempre um pouco difícil porque não falo inglês e vocês não falam português, mas acho que quando falamos a verdade, falamos com a alma e os olhos, e as pessoas percebem. E eu aprendi com a minha mãe a olhar nos olhos quando converso com outro ser humano, porque a verdade não é dita pela boca, é dita pelos olhos.

Brasil Wire